terça-feira, 31 de julho de 2012

Cinema e Psicanálise

Filme: Na Estrada (On the Road)
Diretor: Walter Salles Jr. (França, EUA, Reino Unido, 2012).



Sinopse:

Se você usa ou já usou jeans e cabelo comprido, se já pensou ou viajou pelo mundo sem compromisso, se ama a liberdade e desconfia do sistema, então você é filho dessa história real passada na América dos anos 50 chamada Na Estrada. Publicado em 1957, o livro contava a história das viagens pelos EUA de seu autor, Jack Kerouac,e do amigo, Neal Cassady. Pulsando com os ritmos do jazz, do sexo, das drogas e da busca pelo desconhecido, Na Estrada, finalmente levada ao cinema pelo diretor Walter Salles, conta a história de um escritor aspirante de 18 anos de idade chamado Sal Paradise, cuja vida é energizada e, finalmente, redefinida pela chegada de Dean Moriarty,um espírito livre, destemido, que passou boa parte de sua vida dentro e fora da cadeia. Entre eles, uma paixão: uma garota precoce e libertária de 16 anos chamada Marylou. Juntos, Sal e Dean atravessam a América em busca de diversão, inspiração e da última fronteira do país. Ao longo da jornada eles transcendem todas as barreiras sociais e geográficas em busca de experiências de transcendência física e sensorial. Livro que fundamenta a geração beat, uma das primeiras perguntas feitas pelo filme é: sabe para onde está indo, ou está apenas indo?”.
(Fontes:  cinepop e cinemacomrapadura)



Comentários:

O filme chama a atenção por conta de uma geração jovem e libertária, que busca sua independência. Indiscutivelmente importante e influente, a geração beat marca culturalmente toda uma geração, influenciada pelos costumes, música e comportamento dos anos 50 e 60, sendo o embrião do movimento hippie.
O filme mostra os excessos dos personagens, que vão ao limite, estimulados por muito sexo, drogas e jazz. Uma geração que busca a sensação de completude, de gozo imediato com o experimentalismo alucinógeno e sexual.
Henry Miller que entendia bastante de excessos já dizia: “queria ver tudo, sentir tudo, exaurir tudo, explorar tudo”.  As cenas que marcam o filme são de jovens inconsequentes em festas dionisíacas banalizando excessos do consumo, indiferentes a apatia.
As compulsões vorazes e o seu contrário, a apatia, enfraquecem a dor e a ameaça do aniquilamento do eu (lógica da castração). Falar de excesso é falar de falta, de angústia.
As pulsões de vida e de morte ficam evidenciadas, já que podemos relacionar as ligações amorosas que estabelecemos com o mundo, com as pessoas e com nós mesmos, o princípio de prazer e pulsões eróticas com a pulsão de vida. A pulsão de morte pela agressividade tanto para si quanto para o outro e a compulsão à repetição.
Podemos dizer que é um filme sobre a transgressão e há na Filosofia e Psicanálise reflexões importantes a respeito do tema identificadas com esta geração:
“A transgressão precisa da lei para se por em ação, ao mesmo tempo é a transgressão que a funda. A transgressão como um salto para além do princípio de prazer. O desejo tem a necessidade de um salto no impossível, necessidade da transgressão. O desejo é desejo de limites e desejo de ir além dos limites; a transgressão ultrapassa e nunca para de recomeçar a ultrapassar. A transgressão não é mais do que imaginação, e o limite não existe fora do entusiasmo que a atravessa e a nega”(Georges Bataille).
A transgressão é uma violência contra a ordem do mundo: a ordem do trabalho e a ordem sexual, que presumem uma conduta sexual bem organizada e submetida a regras precisas.
A transgressão é um jogo. Jogo no sentido da mobilidade, instabilidade, prazer: jogo entre o possível e impossível, a castração e o gozo, o desejo e a transgressão.
A transgressão faz pensar na infração, na desordem, na liberdade. Essa liberdade, contudo, depende paradoxalmente da lei, ao ponto de lei e transgressão algumas vezes poderem se confundir. Para Bataille, transgressão representa o imprevisto, única possibilidade de sair do sério, do trabalho que aliena. Para Lacan transgressão é uma astúcia, que remete ao gozo.
Contardo Calligaris comentou em sua coluna: “O filme de Salles está sendo a ocasião imperdível de um balanço – ainda não decidi se festivo ou melancólico. Cuidado, o balanço não interessa só minha geração. Cada um de nós pode se perguntar, um dia, como resolveu a eterna e impossível contradição entre segurança e aventura: quanta aventura ele sacrificou à sua segurança”? E conclui: “a segurança é sempre ilusória diante da morte e qualquer aventura não passa de uma ficção, um sonho suspenso entre a expectativa e a lembrança”.
Assista ao filme e se inspire!

Vanessa M. da Ponte
Psicóloga do Lien Clínica e Assessoria

[Fonte: Folha de S. Paulo e Àgora, “Os percursos da transgressão (Bataille e Lacan)”, de Silvia Lippi]

segunda-feira, 2 de julho de 2012

Infância e Educação

As mordidas das crianças pequenas


Canibalismo de Sérgio Telles (*) Publicado no Caderno 2 do jornal “O Estado de São Paulo” em 28/04/2012


A partir do excelente artigo de Sérgio Telles chamado Canibalismo, tentaremos pensar o significado das mordidas, situação muito comum em crianças pequenas. 
O autor começa falando sobre práticas canibais ou antropofágicas, comuns em alguns povos considerados “primitivos ou selvagens”, e em casos raros e recentemente veiculados pela mídia, por pessoas com graves distúrbios psíquicos que teriam praticado estes atos canibais.
Para além destes casos extremos ou peculiares, podemos pensar em situações do cotidiano nas quais existem manifestações de carinho onde ocorrem mordidas. Por exemplo, entre pais e crianças pequenas ou entre namorados. Nestas cenas as mordidas não ultrapassam o limite da dor suportável (espera-se) e são recebidas como manifestações amorosas. Nestas situações, porém, se revela uma certa ambigüidade. 
Telles também se refere ao movimento “antropofágico” de Arte Moderna no qual a tentativa de incorporar traços do outro (colonizador-colonizado) levaria a assimilação cultural, assimilação que significa se apropriar ou introjetar a cultura do outro. Este processo implica identificação, ou seja, estamos falando de um processo inconsciente, através do qual, introjeto traços do outro.

No caso que gostaríamos de discutir, trata-se de crianças pequenas de 1 a 3 anos. Professoras e até mesmo pais relatam uma certa estranheza ao perceber que as mordidas –que deixam às vezes fortes marcas- nem sempre ocorrem em momentos de disputa ou raiva aparente. Em alguns momentos elas aparecem repentinamente sem que se compreenda o que aconteceu.
Gostaríamos de propor uma forma diferente de olhar para estas mordidas que são entendidas como atos de não-amor, de uma criança que não gosta da outra, de crianças “agressivas”. Em muitos casos, é o contrário o que acontece: a criança ainda sem muitas possibilidades de pensamento e movida por fortes impulsos quer objetos ou características do outro que admira. E aqui podem ser brinquedos, alimentos, partes do corpo, atenção etc. O processo de pedir, de trocar, ou seja, os limites entre o eu e o outro ainda não estão bem delimitados, assim como a linguagem que poderia intermediar as situações onde esse outro-criança tem o que ela deseja. Assim, muitas mordidas são fruto de uma valorização do outro que passa a ser admirado, invejado, temido etc. Os sentimentos são intensos, com grande carga impulsiva e com traços de ambigüidade. 
Aqui a ideia é inconsciente e tem traços de canibalismo: “o que outro tem e admiro pode ser disputado e arrancado dele, mas também o outro pode ser um objeto que eu quero, se eu lhe tirar um “pedacinho” levo algo dele comigo”. Esta “conversa interior” é impossível para a criança por ser ela muito pequena e por esta tentativa de identificação com o outro ser muito primária (primitiva) e inconsciente.
Imagino que ao ler isto, o leitor tenha pensado também nos adolescentes e a tentativa de “copiar” os artistas, suas roupas, cabelos, jeito de falar etc.; e também a relação de alguns adultos com seus ídolos que os levam a fazer coleções de fotografias, guardar reportagens, cobiçar objetos deles como roupas e outros, acompanhá-los em viagens, desculpá-los de tudo, pensando que conhecem intimamente e até “amam” o ídolo. O processo é semelhante, porém, acredita-se que tanto o adolescente quanto o adulto possam ser menos impulsivos e mais reflexivos, pelo menos, às vezes...

Liliana Emparan
Psicopedagoga e Psicanalista
Lien Clínica e Assessoria