As mordidas das crianças pequenas
Canibalismo de Sérgio Telles (*) Publicado no Caderno 2 do jornal “O Estado de São Paulo” em 28/04/2012
A partir do excelente artigo de Sérgio Telles chamado Canibalismo, tentaremos pensar o significado das mordidas, situação muito comum em crianças pequenas.
O autor começa falando sobre práticas canibais ou antropofágicas, comuns em alguns povos considerados “primitivos ou selvagens”, e em casos raros e recentemente veiculados pela mídia, por pessoas com graves distúrbios psíquicos que teriam praticado estes atos canibais.
Para além destes casos extremos ou peculiares, podemos pensar em situações do cotidiano nas quais existem manifestações de carinho onde ocorrem mordidas. Por exemplo, entre pais e crianças pequenas ou entre namorados. Nestas cenas as mordidas não ultrapassam o limite da dor suportável (espera-se) e são recebidas como manifestações amorosas. Nestas situações, porém, se revela uma certa ambigüidade.
Telles também se refere ao movimento “antropofágico” de Arte Moderna no qual a tentativa de incorporar traços do outro (colonizador-colonizado) levaria a assimilação cultural, assimilação que significa se apropriar ou introjetar a cultura do outro. Este processo implica identificação, ou seja, estamos falando de um processo inconsciente, através do qual, introjeto traços do outro.
No caso que gostaríamos de discutir, trata-se de crianças pequenas de 1 a 3 anos. Professoras e até mesmo pais relatam uma certa estranheza ao perceber que as mordidas –que deixam às vezes fortes marcas- nem sempre ocorrem em momentos de disputa ou raiva aparente. Em alguns momentos elas aparecem repentinamente sem que se compreenda o que aconteceu.
Gostaríamos de propor uma forma diferente de olhar para estas mordidas que são entendidas como atos de não-amor, de uma criança que não gosta da outra, de crianças “agressivas”. Em muitos casos, é o contrário o que acontece: a criança ainda sem muitas possibilidades de pensamento e movida por fortes impulsos quer objetos ou características do outro que admira. E aqui podem ser brinquedos, alimentos, partes do corpo, atenção etc. O processo de pedir, de trocar, ou seja, os limites entre o eu e o outro ainda não estão bem delimitados, assim como a linguagem que poderia intermediar as situações onde esse outro-criança tem o que ela deseja. Assim, muitas mordidas são fruto de uma valorização do outro que passa a ser admirado, invejado, temido etc. Os sentimentos são intensos, com grande carga impulsiva e com traços de ambigüidade.
Aqui a ideia é inconsciente e tem traços de canibalismo: “o que outro tem e admiro pode ser disputado e arrancado dele, mas também o outro pode ser um objeto que eu quero, se eu lhe tirar um “pedacinho” levo algo dele comigo”. Esta “conversa interior” é impossível para a criança por ser ela muito pequena e por esta tentativa de identificação com o outro ser muito primária (primitiva) e inconsciente.
Imagino que ao ler isto, o leitor tenha pensado também nos adolescentes e a tentativa de “copiar” os artistas, suas roupas, cabelos, jeito de falar etc.; e também a relação de alguns adultos com seus ídolos que os levam a fazer coleções de fotografias, guardar reportagens, cobiçar objetos deles como roupas e outros, acompanhá-los em viagens, desculpá-los de tudo, pensando que conhecem intimamente e até “amam” o ídolo. O processo é semelhante, porém, acredita-se que tanto o adolescente quanto o adulto possam ser menos impulsivos e mais reflexivos, pelo menos, às vezes...
Liliana Emparan
Psicopedagoga e Psicanalista
Lien Clínica e Assessoria
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